domingo, 6 de setembro de 2009

setembro - clara - joão

setembro

me despedaço em folha
para ser levado em vento nas rotas migratórias
é setembro
e aves do norte se reencontram no sul
vou em bicos estrangeiros
no ouvir da língua de pássaros
te encontrar

me desmancho em chuva
para te molhar depois da seca
é setembro
e logo logo a estiagem vai passar
serei em teu caminho grama verde repentina
e também chão firme
a te receber nas andanças matinais

me encontro em teus horizontes infinitos
para ser cantado aqui num refrão respondido aí por você
é setembro
e as cigarras ainda não anunciam verão
só os bem-te-vi saúdam nossa alegria
numa espécie de recepcionistas
com amor-perfeito torto pendurado nos bicos

me sirvo em copo
para ser bebido por você
é quase outubro
e já nem conto mais o tempo
só constato uma imensidão
que tem apenas um nome:
saudade

-------------
clara

clara escureceu um dia. seus olhos amanheceram sem brilho. seu andar perdeu força. sua vontade desmaiou, seu desejo desacreditou. seu sonho dormiu. Só se esquecia.
clara não acordou e nem dormiu. simplesmente se levantou.

clara escurecida, agora também descalça, de camisola caminhava na cidade das ruas sem saída.
sem nenhuma claridade, a andarilha deixava restos de cabelos que caíam em chumaços entre os paralelepípedos.

clara, escurecida, descalça e agora também careca, sem querer, num bocejo, mordeu os próprios dentes apodrecidos. não sangraram ( já estavam podres assim há tempos).
Sem seu sorriso, a moça parou quando suas unhas dos pés e das mãos cresceram tanto tanto tanto que a enraizaram.
clara, escurecida, descalça, careca, sem dentes, teve a pele toda toda toda enrugada. rapidamente, contorceu o corpo, abriu os braços, os olhos ocos, a boca num grito mudo, e se transformou em árvore.

numa das ruas sem saída, daquela cidade, existe uma árvore, que até hoje, nas noites de lua nova arde em ser mulher.

----------------------------
João

João era filho de João que também era filho de João. João, o primeiro, era preto preto preto. Morreu ninguém sabe como, porque o segundo João, filho do primeiro, não se lembrou de contar para seu filho João. O terceiro João, filho do segundo, neto do primeiro, também não quis saber, porque sempre se confundia com as vozes que escutava.

O segundo João também escutava vozes, também era preto e gostava de cantar. Mas um rio cheio enxurrou sua vida e levou a vontade de cantar. Morreu mudo, e oco, antes de ver o filho João, o terceiro, ser pai... Morreu sem dizer um dos segredos que as vozes cantavam pra ele, morreu sem cantar para o neto.

O terceiro João não morreu, não é tão preto, e não gosta de cantar. Calou as vozes que escutava, calou o canto que o fazia dançar, calou o rio que levou a voz do pai.
O terceiro João teve um filho homem que não é João e nem é preto; mas escuta as vozes e
o silêncio do pai, guarda o mistério do bisavô, e admira o rio que revela o canto do avô.
O terceiro João teve filhas, que não são Joanas e nem Marias, e uma delas tem um filho João, que um dia vai cantar o mistério do bisavô, abrir os segredos do tataravô, colocar voz no silêncio do avô e a fazer daquele que não-é-João, ser um pouco João também.

Um comentário:

  1. Cadu, estás de coração cheio. Clara e João me tocaram muito. Setembro te desfolhou em amor. Saudades. Quando as esquinas te trouxerem de volta, bate na minha. bjs

    ResponderExcluir