sexta-feira, 7 de junho de 2013

dois

Caminhavam em direções opostas na beira da praia. 
Era o entardecer nos corpos. Hora vazia dos que restam solitários.
Quando o lusco fusco era o que lhes contornava, se encontraram nos olhos. 
E se acenderam. E se desejaram como velhos amantes que retornam ao gosto do reconhecimento do corpo que já se sabe ser amado.
Se aproximaram felinos. Tocando a miúdos,  mas só de inicio. Só de início mesmo, porque as mãos pesaram, atravessando as peles,  amassando carnes,  esquentando almas.
Dedos percorreram, mãos traçaram caminhos, línguas confirmaram gostos salgados,
e bocas se convidaram para mergulhos nos escuros úmidos de cada um. Em saltos triplos e mortais se lançaram nestes mergulhos...
Se roçavam, entre abraços e apertos...
Se penetraram em exploração íntima e bailante. E assim dançaram...
(Ao som da música silenciosa dos encontros suspensos)
Dançaram, dançaaaarammm, dançaram... Dançaram. Dançaram. Dançaram.
Dançaram até não se caberem mais e inundaram-se de felicidade.
Se acolheram nos corpos ainda tontos. Se levantaram.
Se olharam felizes, beijaram cúmplices e se deram as mãos.

Aqueles dois homens saíram juntos daquela praia.
Na mesma direção.


sábado, 2 de fevereiro de 2013

espera

pulverizo-me
no auge
da angustia.

suave fuga
em gotículas
esvoaçantes,
que umedecem
em sal
teu rosto.


esperaremos
amanhecer.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

recomeço

descorporativizo o meu dia
as minhas horas
os meus minutos
os meus segundos
o tempo já não pertenço e
não me tence.

descorporativizo os meus desejos
e que se tornem desabrigados:
da obrigação da realização imediata
diante do medo tentador do fracassso.
o querer e o desejar já não me pertencem.

descorporativizo a ansia da frustração,
ficando com minhas lágrimas
diante do teu não.
prefiro assim caralho!

sim, um outro viver é ainda possivel.

desabrigo um futuro cheio de devires
e um passado que muito me diz.
por vezes para seguir, por vezes para não ir
vos largo ao relento.

pra essa chuva abençoar,
me desabrigo para não saber
e recomeçar.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

sábado, 16 de janeiro de 2010

parição

vez ou outra me assomam sentimentos de parir.
por exemplo:
parir flores num dia triste,
parir uma lua numa manhã insone,
parir um peido quando não tenho rumo,
parir um café num bico de prosa,
parir uma montanha em meio a meditação,
parir sementes quando em desejo de sonhar,
parir filhos quando me encho de feminilidade,
parir gêmeos quando tenho dúvidas,
parir vida quando penso na minha tataravó,
parir pássaros quando lembro de casa,
parir sol quando me molho,
parir um medo corajoso do tamanho de um bicho de sete cabeças,
parir um sorriso sincero para assumir a falta de coragem,
parir um filho quando penso nos 40 anos,
parir um neto quando sonho nos 70 anos,
parir um bisneto quando penso nos 100,
parir num novo mundo quando penso no agora.

sábado, 26 de setembro de 2009

resposta ao poema de 25 de junho

nos últimos meses aprendi a gostar da incertidão dos horizontes de pedras
pelo menos me trazem o conforto de um abraço
ante a tanta imprecisão da natureza...

domingo, 6 de setembro de 2009

setembro - clara - joão

setembro

me despedaço em folha
para ser levado em vento nas rotas migratórias
é setembro
e aves do norte se reencontram no sul
vou em bicos estrangeiros
no ouvir da língua de pássaros
te encontrar

me desmancho em chuva
para te molhar depois da seca
é setembro
e logo logo a estiagem vai passar
serei em teu caminho grama verde repentina
e também chão firme
a te receber nas andanças matinais

me encontro em teus horizontes infinitos
para ser cantado aqui num refrão respondido aí por você
é setembro
e as cigarras ainda não anunciam verão
só os bem-te-vi saúdam nossa alegria
numa espécie de recepcionistas
com amor-perfeito torto pendurado nos bicos

me sirvo em copo
para ser bebido por você
é quase outubro
e já nem conto mais o tempo
só constato uma imensidão
que tem apenas um nome:
saudade

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clara

clara escureceu um dia. seus olhos amanheceram sem brilho. seu andar perdeu força. sua vontade desmaiou, seu desejo desacreditou. seu sonho dormiu. Só se esquecia.
clara não acordou e nem dormiu. simplesmente se levantou.

clara escurecida, agora também descalça, de camisola caminhava na cidade das ruas sem saída.
sem nenhuma claridade, a andarilha deixava restos de cabelos que caíam em chumaços entre os paralelepípedos.

clara, escurecida, descalça e agora também careca, sem querer, num bocejo, mordeu os próprios dentes apodrecidos. não sangraram ( já estavam podres assim há tempos).
Sem seu sorriso, a moça parou quando suas unhas dos pés e das mãos cresceram tanto tanto tanto que a enraizaram.
clara, escurecida, descalça, careca, sem dentes, teve a pele toda toda toda enrugada. rapidamente, contorceu o corpo, abriu os braços, os olhos ocos, a boca num grito mudo, e se transformou em árvore.

numa das ruas sem saída, daquela cidade, existe uma árvore, que até hoje, nas noites de lua nova arde em ser mulher.

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João

João era filho de João que também era filho de João. João, o primeiro, era preto preto preto. Morreu ninguém sabe como, porque o segundo João, filho do primeiro, não se lembrou de contar para seu filho João. O terceiro João, filho do segundo, neto do primeiro, também não quis saber, porque sempre se confundia com as vozes que escutava.

O segundo João também escutava vozes, também era preto e gostava de cantar. Mas um rio cheio enxurrou sua vida e levou a vontade de cantar. Morreu mudo, e oco, antes de ver o filho João, o terceiro, ser pai... Morreu sem dizer um dos segredos que as vozes cantavam pra ele, morreu sem cantar para o neto.

O terceiro João não morreu, não é tão preto, e não gosta de cantar. Calou as vozes que escutava, calou o canto que o fazia dançar, calou o rio que levou a voz do pai.
O terceiro João teve um filho homem que não é João e nem é preto; mas escuta as vozes e
o silêncio do pai, guarda o mistério do bisavô, e admira o rio que revela o canto do avô.
O terceiro João teve filhas, que não são Joanas e nem Marias, e uma delas tem um filho João, que um dia vai cantar o mistério do bisavô, abrir os segredos do tataravô, colocar voz no silêncio do avô e a fazer daquele que não-é-João, ser um pouco João também.