sábado, 26 de setembro de 2009

resposta ao poema de 25 de junho

nos últimos meses aprendi a gostar da incertidão dos horizontes de pedras
pelo menos me trazem o conforto de um abraço
ante a tanta imprecisão da natureza...

domingo, 6 de setembro de 2009

setembro - clara - joão

setembro

me despedaço em folha
para ser levado em vento nas rotas migratórias
é setembro
e aves do norte se reencontram no sul
vou em bicos estrangeiros
no ouvir da língua de pássaros
te encontrar

me desmancho em chuva
para te molhar depois da seca
é setembro
e logo logo a estiagem vai passar
serei em teu caminho grama verde repentina
e também chão firme
a te receber nas andanças matinais

me encontro em teus horizontes infinitos
para ser cantado aqui num refrão respondido aí por você
é setembro
e as cigarras ainda não anunciam verão
só os bem-te-vi saúdam nossa alegria
numa espécie de recepcionistas
com amor-perfeito torto pendurado nos bicos

me sirvo em copo
para ser bebido por você
é quase outubro
e já nem conto mais o tempo
só constato uma imensidão
que tem apenas um nome:
saudade

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clara

clara escureceu um dia. seus olhos amanheceram sem brilho. seu andar perdeu força. sua vontade desmaiou, seu desejo desacreditou. seu sonho dormiu. Só se esquecia.
clara não acordou e nem dormiu. simplesmente se levantou.

clara escurecida, agora também descalça, de camisola caminhava na cidade das ruas sem saída.
sem nenhuma claridade, a andarilha deixava restos de cabelos que caíam em chumaços entre os paralelepípedos.

clara, escurecida, descalça e agora também careca, sem querer, num bocejo, mordeu os próprios dentes apodrecidos. não sangraram ( já estavam podres assim há tempos).
Sem seu sorriso, a moça parou quando suas unhas dos pés e das mãos cresceram tanto tanto tanto que a enraizaram.
clara, escurecida, descalça, careca, sem dentes, teve a pele toda toda toda enrugada. rapidamente, contorceu o corpo, abriu os braços, os olhos ocos, a boca num grito mudo, e se transformou em árvore.

numa das ruas sem saída, daquela cidade, existe uma árvore, que até hoje, nas noites de lua nova arde em ser mulher.

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João

João era filho de João que também era filho de João. João, o primeiro, era preto preto preto. Morreu ninguém sabe como, porque o segundo João, filho do primeiro, não se lembrou de contar para seu filho João. O terceiro João, filho do segundo, neto do primeiro, também não quis saber, porque sempre se confundia com as vozes que escutava.

O segundo João também escutava vozes, também era preto e gostava de cantar. Mas um rio cheio enxurrou sua vida e levou a vontade de cantar. Morreu mudo, e oco, antes de ver o filho João, o terceiro, ser pai... Morreu sem dizer um dos segredos que as vozes cantavam pra ele, morreu sem cantar para o neto.

O terceiro João não morreu, não é tão preto, e não gosta de cantar. Calou as vozes que escutava, calou o canto que o fazia dançar, calou o rio que levou a voz do pai.
O terceiro João teve um filho homem que não é João e nem é preto; mas escuta as vozes e
o silêncio do pai, guarda o mistério do bisavô, e admira o rio que revela o canto do avô.
O terceiro João teve filhas, que não são Joanas e nem Marias, e uma delas tem um filho João, que um dia vai cantar o mistério do bisavô, abrir os segredos do tataravô, colocar voz no silêncio do avô e a fazer daquele que não-é-João, ser um pouco João também.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

anunciação

a vida sempre nos dá sinais de um novo tempo.
principalmente se:
uma lua de agosto anuncia um novo céu sobre o horizonte.
duas estrelas cadentes caem ao mesmo tempo.
uma tempestade de garças faz enchente nos rios do cerrado.
um canto ao pé do ouvido faz dançar os cabelos íntimos.
uma brisa percorre buracos úmidos.
um silêncio conversa entre quatro olhos.
uma manhã é despertada por uma lágrima de sorriso de olho.
uma rua é atravessada por epifanias minúsculas.
uma coincidência não se repete.
um par de asas decide trocar a rota migratória.
uma bicicleta anda sozinha a procura de seu dono.
um carinho no peito escreve: te amo.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

a boneca

Eu tinha uma boneca de 80 anos. Ela foi brinquedo da minha avó, da minha mãe e da minha irmã. A boneca só foi minha quando morreu. Minha irmã a tinha enterrado no meio da lama do cantinho do jardim da minha mãe com as plantas da minha avó. Eu a desenterrei. Limpei. Ela estava só com um olho. Coloquei no lugar do outro um papel pintado. Barbantinho no lugar do cabelo. Coloquei um par de óculos para boneca me ver bem. Ela me vê só com um olho. No outro ela me pinta na cabeça dela.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

escrito na parede do meu banheiro (atual caderno de pequenas anotações):

"incertos são os horizontes que têm pedras
prefiro os de águas
são mais infinitos"

quarta-feira, 20 de maio de 2009

acordo com gostos cinzas no corpo

uma febre descortina meus olhos

penso em líquidos viscosos

repenso

repenso repetidamente

repenso

re-sinto
sinto
sinto te

ao meu lado na cama entre os lençóis
me olhando com olhos fechados

e sorrindo de boca fechada
quando te toco
ainda dormindo

despertamos


***

não tenho mais nenhuma certeza

desaprendi com as viagens
que os horizontes
são linhas

desaprendi
os pontos de fuga

não tenho mais certezas
será que também
nem tenho mais
essa
a de não ter mais certezas

???

sexta-feira, 15 de maio de 2009

hoje não me agüentava mais em mim
ejaculei-me

ontem não me agüentava mais em mim
desejei ser sol
para arder-me
e consumir-me
durante a noite
durante sonhos

terça-feira, 14 de abril de 2009

estou
atravessado por uma palavra dilacerante
minhas vísceras
ardem
o sangue
infla
o fundo dos meus olhos
doem
meus ouvidos
mergulham
no teu silêncio
na tua inexistência
meu corpo te quer

domingo, 15 de março de 2009

correr correr correr
no meio da noite
de si
para ti
quem?
para tis
que não sei onde está
não vai dar o ar da sua graça?
uma água quente entornou no meu peito
queimou meu pulmão
faleceu meu coração
desritmou minha alma
imobilizou meu corpo
colocando-o num caixão de cristal
trancado a sete chaves
a sete palmos
a espera da eterna paciência divina

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

pés amarrados

a sensação de ter sido presenteado pela vida desapareceu assim que ele leu a sentença: "a tentativa de um relacionamento abandonada".
seu coração e a tal da tentativa de gostar foram abortadas pela distância, infortúnio, e amargores cotidianos. ele, que de um segundo para o outro havia se transformado de desejo de relacionamento para tentativa e em seguida num abandono, chorou rindo de sua desgraça e se lançou em beijosabraçosemaranhados no primeiro corpo anônimo na tentativa desconhecida de se perder. o pior: é que não se perdeu! e sim, gozou, gozaram compreendidos nos seus corpos. recompensado pelo prazer sem nome e endereço, e recobrado de sua tentativa de existência, ele calçou os sapatos bem amarrados, para que seus pés também não o abandonassem.

domingo, 4 de janeiro de 2009

primeiro

quando ele fechou a última caixa, teve uma certeza: encerrou ali um tempo, seu passado.
quando seus olhos tocaram todas aquelas caixas repletas de passados, teve vontade de gritar.
não gritou. chorou em silêncio como todos aqueles que reconhecem a perspectiva de um novo tempo e a dor dessa passagem.
sorriu em seguida. olhou pela última vez o céu que o sempre iluminou e choveu naquela janela. trancou-a. se despediu do cômodo que o tornara mais feliz. e ao trancar a porta, engoliu a chave, para terminar, finalmente, a digestão do tempo.
abriu o portão que o levava para a rua e sorriu: um novo vento soprava nos seus cabelos e arejavam seus sonhos mais ternos. uma vontade súbita de correr rompeu seu peito guiando os pés frenéticos entre ruas infinitamente desconhecidas.